segunda-feira, 27 de maio de 2013

As Palavras Andantes - Eduardo Galeano

Galeano é dos raros poetas que falam tão bem quanto escrevem.
Conheci o autor ao assistir um episódio da série Sangue Latino.
A entrevista é linda de doer, link aqui . Ao contrário do que é escrito na descrição do vídeo, a série é de Eric Nepomuceno, o mesmo que traduz a maioria de seus livros pro português.
Depois de assistir ao documentário, se for como eu, vai sair correndo pra uma livraria pra comprar qualquer coisa do uruguaio.
Mas volta aqui, deixa eu contar mais.
Apesar do apelo emocional do Livro dos Abraços (quantas vezes abro um livro pra ser abraçada?), na prateleira me chamou mais atenção o Palavras Andantes.
A capa é ilustrada pelo inconfundível José Francisco Borges, cordelista celebrado no mundo inteiro (menos em São Paulo). Ceramista, carpinteiro, trabalhador rural, pedreiro e pintor de paredes, J. Borges escreveu e ilustrou cerca de 300 cordéis, expôs suas gravuras e dar palestras no mundo inteiro e é o maior cordelista vivo que se tem notícia.
Mais à frente, no prefácio:
"Visto de perto, ninguém é normal". Galeano com prefácio de Caetano.
Juntei minhas moedas e fui pra casa ansiosa encontrar o Brasil no Uruguai.
O livro, em si, é cheio de Janelas, recheadas de pequenos contos fantásticos e devoráveis em duas tardes.
A primeira janela é sobre o próprio livro, onde o autor explica como foi parar na oficina de Borges em Bezerros, no interior do Nordeste, sobre como surgiu o projeto do livro, e as palavras projetadas que ao cordelista não diziam muito.
Então que Galeano para de dizer e começa a contar (e cantar), e assim o livro flutua, cheio de pequenas histórias que muito lembram a temática fantástica de cordel do nordeste brasileiro.
Galeano, com a ajuda de Borges, reuniu essas palavras andantes num livro bonito e despretensioso pra assim deixá-las voar mais longe.
Sem dono e de todo mundo.

Observações:
- Alguns dos trechos de Palavras Andantes estão também em Livro dos Abraços.
- Entre tantas janelas: sobre as proibições, sobre o adeus, sobre a memória, os ciclos, Palavras Andantes é uma janela pra dentro de cada brasileiro.
- Como disse um comentário no vídeo do documentário, que bom ser contemporânea de Eduardo Galeano.

terça-feira, 26 de março de 2013

A Paixão Segundo G. H. - Clarice Lispector

Todo exemplar de livro tem uma jornada de nascimento, coisa que o criado mudo sabe bem, mas não conta.
Às vezes vai parar nas nossas mãos por mera atração física.
Edições raras viram troféu na estante, tamanho o fetiche.
Tem casos que nos foi apresentado por um amigo em comum - "ele combina tanto com você!".
Posso dizer que já aconteceu - me apaixonar pelo nome.
Também já me tombei pela estirpe. Sem contar o velho acaso.
Ao tirar da prateleira, com a finalidade de anotar trechos aqui pro Todo Ponto, tirei a camada de pó da capa e o peito denunciou uma saudade.
Cheio de anotações e uma dedicatória bonita da Maíra, presente amiga, na época prestes a viajar pra longe, por um ano.
Foi o livro de estreia do Livrando.
Livrando é uma espécie de clube do livro/desculpa pra conhecer gente incrível e tomar bons vinhos que acontece quinzenalmente entre amigos, na casa da Clarice e do Paulo, casal anfitrião da mais alta gentileza, mais fina trilha sonora e maiores orgias gastronômicas.
Surgiu em 2011 e trouxe as melhores noites da minha vidinha pacata paulistana.
O livro não poderia ter sido melhor escolha. Fez com que nos apaixonemos uns pelos outros e mais ainda pela Clarice.
Clarice.
Clarice dispensa muitas apresentações.
Aliás, Clarice talvez precise ser desapresentada.
É tanta frase atribuída, tanto clichê. Nenhum descontexto que faça jus à nossa maior autora.
A Paixão Segundo G.H. é um livro difícil, dolorido. É um renascimento.
Foi lido e analisado à exaustão, tocando a alma de cada um envolvido nessa primeira leitura.
O enredo, se eu contar assim, é banal.
G.H., após despedir a empregada, resolve fazer uma faxina na área de serviço (área estranha a ela até então). Inicia aí uma jornada de horror e renascimento, chegando até o negado selvagem, nosso instinto primário. Kakfiana, esmaga a barata contra a porta de um armário e resolve provar da gosma branca.
Aos poucos, entramos na imensidão do interior de G.H., sua vida, suas dúvidas, seus amores, transcendendo o cotidiano, num intenso diálogo que tenta a lançar pra fora do humano e observar a si com a visão de uma barata, estranha à civilização e prestes a explodir.
Assim, o livro, é universal.
G.H. bravamente percorre toda a distância que nos separa da barata.
Clarice procura o humano que nos resta ao atravessar aquele animal, considerado nosso oposto, com os próprios dentes.
E dentro de G.H. encontramos cada um de nós. É impossível não se deixar levar por tantas questões comuns, tantos espelhos. Impensável, porém possível, passar incólume (afinal existem também os daltônicos das letras).
Alerta na primeira página:

A POSSÍVEIS LEITORES
Este livro é como um livro qualquer.
Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas
por pessoas de alma já formada.
Aquelas que sabem que a aproximação,
do que quer que seja, se faz gradualmente
e penosamente - atravessando inclusive
o oposto daquilo que vai se aproximar.
Aquelas pessoas que, só elas,
entenderão bem devagar que este livro
nada tira de ninguém.
A mim, por exemplo, o personagem G.H.
foi dando pouco a pouco uma alegria difícil;
mas chama-se alegria
C.L.

Clarice que me permita a ousadia de ter lido sem ter alma formada.
Também me pergunto, agora, se alguém a tem.
Clarice não dá ponto sem nó (não é isso um bom autor?).
A Paixão Segundo G.H. é uma escolha. Difícil.
Não é livro pra quem compartilha frase de auto ajuda usando o peso de Lispector.
É livro pra gente grande. Que sabe ser do tamanho de uma barata.
E chama-se alegria.

Anotação randômica:
- Com a nova lei trabalhista de empregadas, fico imaginando Danuza Leão comendo barata.
- Barata é proteína?

segunda-feira, 11 de março de 2013

O Grande Gatsby - F. Scott Fitzgerald

Existem livros bons.
Existem livros gostosos de ler.
Existem livros envolventes.
Existem livros que você se apaixona pelas personagens.
Existem livros que você não quer que terminem nunca (e fica na dúvida se devora tudo ou se economiza páginas).
E existem livros que são tudo isso e mais um pouco, como é o caso de O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald.
O primeiro pensamento que me vem à mente após terminar a leitura é entender como Fitzgerald não é idolatrado ferozmente fora dos Estados Unidos. Estilo, construção de personagens, enredo.
Tudo se encaixa. Habilidade de Hemingway com suavidade de Cole Porter.
Meu amor por esse livro começou cedo, no dia da compra.
Encontrei o exemplar laranjinha, edição da Penguin, no dia em que realizei meu sonho de conhecer a Shakespeare and Co. em Paris. Encontrei-o no meio daqueles milhões de livros antigos empilhados, ao lado de um Machado de Assis em inglês, enquanto um cliente tocava piano no andar de cima.
Puro fetiche.

O narrador é o comerciante Nick Carraway, ou "old sport". Com o tempo, fica amigo de seu vizinho, o misterioso Jay Gatsby. Gatsby é um milionário (provavelmente um gângster), popular pelas festas glamourosas que oferecia em sua casa em West Egg.
Nick logo descobre que Gatsby não era assim tão vazio. Oferecia as festas na esperança de encontrar por acaso sua amada Daisy, casada há cinco anos com Tom.
Tom é um bígamo preconceituoso, republicano e com um pronto discurso conservador sobre toda e qualquer coisa. A definição de hipócrita no dicionário.
A gente fica torcendo pelo Gatsby, claro, que durante o livro se transforma, de magnata intocável a um apaixonado sensível e vulnerável. Mas como acontece na vida, nem sempre quem inspira o amor está a altura de quem sente.
O conflito entre Gatsby, Tom e Daisy desencadeia uma série de acontecimentos que tirariam todo o gosto do livro se eu contasse.
É uma crítica ferrenha e delicada (o estilo de F. Scott prova que é possível essa combinação) ao "Sonho Americano", que contaminou o mundo todo até hoje.
Cheio de paixão, ingratidão, e sem compromisso com o final Hollywoodiano, trágico.
Como se mostra a vida.

Anotações randômicas:
- Se puder, leia em inglês. Não é uma leitura difícil, pelo contrário. Fitzgerald é um dos poucos autores que sabem ser elegantes com muita facilidade em língua inglesa.
- Deve ser muito difícil traduzir um livro desses. Imagino o tradutor perdendo o sono com a expressão "old sport", se decidindo por "velho companheiro" (como está na versão em português). Com certeza passou o resto da vida imaginando novas soluções. Epitáfio: "Tentei".
- Quem gosta de Christian Grey não conheceu Jay Gatsby.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Memórias de Minhas Putas Tristes - Gabriel García Márquez

A ideia inicial era fazer um texto pra publicar aqui sobre Cem Anos de Solidão, mas comecei várias vezes e não soube que caminho trilhar.
Não é tão fácil assim falar sobre seu livro favorito, que te acompanha há muitos e muitos anos.
Portanto, resolvi ir de García em uma das suas produções mais atuais e polêmicas, Memórias de Minhas Putas Tristes.
O enredo é um prato cheio pra patrulha do politicamente correto: um jornalista/crítico musical (veja bem, crítico musical), ao fazer noventa anos, resolve negociar como presente para si mesmo uma noite de amor com uma adolescente virgem. Pra isso, procura Rosa Cabarcas, cafetina conhecida na cidade, que sempre avisava de suas "novidades", aos clientes assíduos, entre eles, o velhote.
Não preciso dizer que é um livro um pouco sensível aos corações mais feministas, dada a maneira que a moça, de 14 anos, é sondada e negociada.
Mas talvez não tenha alcançando muita voz de protesto pelo peso e maestria do nome Gabriel García Márquez, além da maneira com que a noite de sexo nunca é consumada de fato.
Sobre o protagonista/narrador, encontramos um homem que sempre evitou o amor ao máximo. Conta em suas memórias que havia, inclusive, abandonado uma noiva no altar. E também que nunca dormiu com uma mulher sem pagar por ela.
Até então, aos meus olhos, uma personagem não muito fascinante nem carismática.
Mas há o momento surpresa, que é quando constata: "O sexo é o consolo que a gente tem quando o amor não nos alcança".
O leitor nesse momento percebe que ali existe um coração, embora enrugado.
Feita a negociação, o velho jornalista se vê numa cama ao lado de Delgadina, adolescente de 14 anos que dorme, como uma bela adormecida esperando seu príncipe caidão.
O problema é que ele não tem coragem de acordá-la e, aos 90 anos, acaba se apaixonando por uma mulher que apenas, dorme. Talvez a conquista mais fácil da história da literatura.
Como todo enredo de Márquez, é possível apenas ler a história ao pé da letra. Mas como todo autor da classe gênia, não existe ponto sem nó, nem metáfora desintencional.
O que diferencia Gabriel do resto é que ele não parte da pretensão de criar uma moral da história, apenas fornece o convite a pensarmos nas seguintes questões:
Porque ele não a acorda? O que representa essa mulher adormecida? E se ele a acordasse?
Aos 90 anos, quantos amores dormindo este senhor não deixou de acordar? E você?
Sim, é a história de um homem incapaz de amar. E que, mesmo apaixonado, não tem a coragem de trazer à vida esse sopro de juventude.
Se é um livro sobre esperança ou sobre a falta dela, cabe apenas ao leitor identificar.

Anotações randômicas:
- O livro, não só pelo enredo, vale pelas pastilhas de epifania literária típicas de Gabriel: "tragar as lágrimas", "senti na garganta o nó górdio de todos os amores que poderiam ter sido e não foram", e por aí vai. Quem já leu Cem Anos sabe bem.
- Muitas pessoas se sentiram esperançosas e leram no livro uma mensagem de "nunca é tarde para amar". Eu li o contrário. Talvez isso denuncie meu coração gelado. Pra mim era tarde sim, e ele sabia muito bem disso. Mas não existe interpretação correta.
- Como disse um amigo, quem mais poderia tornar bonito o encontro de um Charlie Sheen colombiano nonagenário com uma sofrida virgem de 14 anos, além do Gabbo?

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Coisas com as quais se preocupar, carta de F. Scott Fitzgerald


Linda carta escrita por F. Scott Fitzgerald à sua filha Scottie, na época com 11 anos.
Tradução exclusiva Todo Ponto.

La Paix, Rodgers' Forge
Towson, Maryland

8 de Agosto de 1933

Minha querida:

Me interesso bastante pelo seu atual dever de casa. Você me daria um pouco mais informações sobre suas leituras em Francês? Eu fico contente por você estar feliz — mas eu nunca acreditei muito em felicidade. Eu também nunca acreditei em tristeza. Essas coisas você vê no palco, ou na tela, ou em folhas impressas, mas nunca acontecem realmente com você durante a vida.

As coisas que eu acredito nessa vida são as recompensas pelas suas virtudes (de acordo com seus talentos) e as punições por não cumprir seus deveres,  que são duplamente custosos. Se houver este volume na livraria do Acampamento, você poderia pedir à Mrs. Tyson para te deixar ver um soneto de Shakespeare, no qual ocorre o verso "O lírio, quando apodrece, exala cheiro pior que o de qual­quer outra flor".


Não tive nenhum pensamento no dia de hoje, a vida parece composta de acordar com uma história do Saturday Evening Post. Eu penso em você, sempre e de uma maneira agradável, mas se você me chamar de "Pappy" outra vez eu vou pegar o Gato Branco e bater nele com muita força, seis vezes pra cada vez que você for impertinente… Você reage a isso?

Eu pagarei a conta do acampamento.

Tolo, eu concluirei.

Coisas com as quais se preocupar:

Se preocupe com a coragem
Se preocupe com a limpeza
Se preocupe com a eficiência
Se preocupe com equitação
Se preocupe. . .

Coisas com as quais não se preocupar:

Não se preocupe com a opinião popular
Não se preocupe com bonecas
Não se preocupe com o passado
Não se preocupe com o futuro
Não se preocupe com crescer
Não se preocupe alguém estar a sua frente
Não se preocupe com triunfo
Não se preocupe com as falhas, a não ser que elas venham por sua própria culpa
Não se preocupe com mosquitos
Não se preocupe com moscas
Não se preocupe com insetos em geral
Não se preocupe com seus pais
Não se preocupe com garotos
Não se preocupe com decepções
Não se preocupe com prazeres
Não se preocupe com satisfações

Coisas para pensar: 

O que eu estou procurando exatamente?
O quão boa sou eu em comparação a meus contemporâneos com relação a:

(a) Escolaridade
(b) Eu realmente entendo as pessoas e sou capaz de me dar bem com elas?
(c) Eu estou tentando fazer de meu corpo um instrumento útil ou estou negligenciando-o?

Com o maior amor,

Daddy

P.S. A minha vingança por você me chamar de Pappy será batizar você da palavra Ovo, o que implica que você pertence a um estado de vida bastante rudimentar e eu poderia quebrar você e abrir você de acordo com minha vontade, e eu acho que seria uma palavra que pegaria se eu contar aos seus colegas. "Ovo Fitzgerald." Como você gostaria de passear pela sua vida com — "Ovinho Fitzgerald" ou "Ovo Estragado Fitzgerald" ou qualquer forma que possa ocorrer em mentes férteis? Tente novamente eu juro por Deus que eu vou colocar esse nome em você e só dependerá de você tirá-lo. Porque você gostaria de tamanha encrenca?

Amor incondicional.

sábado, 19 de janeiro de 2013

As cidades Invisíveis - Ítalo Calvino

Esse é um daqueles livros difíceis de escrever sobre.
Talvez porque o segredo não esteja tanto no enredo, mas sim na maestria discursiva do autor.
Sobre Le città invisibili, livro mais conhecido de Calvino, o autor disse:
"Se meu livro As cidades invisíveis continua sendo pra mim aquele em que penso haver dito mais coisas, será talvez porque tenha conseguido concentrar em um único símbolo todas as minhas reflexões, experiências e conjeturas."
E é isso mesmo. É incrível como a descrição de uma cidade pode conter em si tanto simbolismo.
O livro gira em torno das descrições do viajante Marco Polo sobre as cidades que já visitou, a mando do imperador Kublai Khan, que a partir dos relatos deseja construir o império perfeito.
O enredo tem um viés histórico.
Marco Polo viajou durante 30 meses e chegou ao império de Kublai Khan (neto de Gengis Khan), onde atualmente fica Pequim, e lá permaneceu na corte por quase 20 anos.
Ítalo criou a obra imaginando relatos extraordinários do viajante ao imperador.
As 55 cidades descritas têm nome de mulher e aspectos de realismo fantástico (estilo que eu, pessoalmente,  amo).
São enredos de sonho, daqueles que a gente acorda, anota, e passa o dia tentando entender o que o nosso subconsciente tentou dizer com tantas curvas.
Ítalo vestiu suas experiências de curvas, tornou-as mulheres e cidades. E o mais incrível é que essas silhuetas se adaptam às nossas próprias lembranças.
É um livro para se ler devagar, mastigando cada palavra bem devagarzinho, pra ver se não escapa nenhuma cor.
Também é um livro para se ler mil vezes, um descanso de alma que só é entende quem tem paixão por poesia e por encontrar umas verdades aqui e ali, entre as esquinas de palavras e cruzamentos de linguagem.
O vídeo abaixo, As Cidades e o Desejo, anima o conto de uma das cidades, Zobaide. É um vídeo maravilhoso. Muito me espanta a pouca quantidade de views, mas isso já é outro conto.
Leitura essencial, obrigatória e - ah, muito! - deliciosa.


Anotação Randômica:
- Diogo Mainardi ser tradutor de um dos meus livros preferidos é uma mosca na minha sopa, viu...

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

O Duplo - Fiódor Dostoievski

Bom, falar de literatura russa não é fácil.
Principalmente quando você não está muito propenso a dizer que a leitura foi a sétima maravilha da humanidade (bem longe da minha experiência com esse livro).
Antes é bom salientar que é muito complicado falar sobre fluxo narrativo em traduções.
O Paulo Bezerra, tradutor dessa edição, tem feito um bem impagável ao traduzir Dostoievski para o português direto do russo. Antigamente essas traduções eram feitas a partir das versões em Francês, e não é preciso dizer o quanto do estilo se perde com essa sobreposição idiomática.
Mesmo assim, tenho uma certa dificuldade em me envolver com os russos, e sempre tive o azar de pegar livros com personagens (que eu considero) entediantes.
Paranóia é sempre legal, mas a paranóia do Goliadkin (personagem principal de O Duplo) não me fisgou. Achei - resumindo - chato. Mas tem fundamento.
Conscientes de que essa não é uma literatura for fun nem delicinha de ler (e não acho que livros têm essa obrigação), vamos ao enredo.
Goliadkin vive sua vida de papéis e relativa simplicidade: é funcionário do estado e possui verba suficiente pra viver e não ser miserável. Mas é completamente invisível e ridículo aos olhos das pessoas ao seu redor. Ninguém ama o Goli.
Pra piorar, não tem o mínimo carisma ou traquejo social que facilitariam bastante sua convivência em sociedade.
Aos poucos, observa um clone seu (mesmo nome, mesma aparência, mesmo tudo) vagarosamente tomando seu lugar.
No início, aceita, dá abrigo e tem até pena do Duplo, mas depois percebe que ele vai se convertendo em inimigo. O clone do coxinha começa a ganhar a estima das pessoas daquele meio e colocar o 'original' em situações complicadas, o que desagua num fluxo narrativo no qual não se sabe onde começa e termina a loucura de Goliadkin.
Personagem a ser notada: o servo de Goliadkin. Por muitas vezes, o burocrata perde o sono com medo de motins e revoltas vindas da classe mais baixa da qual o criado faz parte. Logo ele, que também não tem muito pato pra dar água. Estilo classe média sofre.
Também é legal notar que os valores sociais - vestimenta, trabalho, ostentação, politicagem - que Goliadkin tanto tenta dominar (fracassadamente) pra uma espécie de ascensão pessoal são tão vivos hoje quanto eram na era dourada da literatura russa, por volta de 1850.
O ponto forte do livro é a maneira que Goliadkin consegue ser notado numa sociedade cheia de nomes e convenções sociais bem definidas: a loucura.
Mas o quanto o livro se tornou cansativo em um dado momento reforça a minha tese de que prefiro literatura russa em contos. Doses homeopáticas.
Pra quem concorda, fica a dica do livro Contos Russos, uma seleção de contos do Rubem Braga com um time de tradutores bastante, digamos, autoral.
Pretendo falar desta seleção em um outro post, mas só por conter "O Capote" do Gógol, com tradução de Vinicius de Moraes (sim, ele mesmo) - conto ao qual Dostoievski atribui o nascimento literatura russa, já vale bastante.
Aliás, se você tiver um tempinho, procure ler "O Capote". É curto, interessante, sinistrinho tipo Poe, essencial pra entender a literatura russa e ao contrário de O Duplo, é indolor.

Anotações randômicas:
- Não diga que é o mesmo enredo da Usurpadora senão os fãs de literatura russa não vão te amar mais (experiência de vida);
- Os burocratas, funcionários de repartição, com seus rituais e paranoias, configuram a teoria literária dos "Coxinhovskis", sobre a extensa gama de protagonistas coxinhas que assombram os enredos russos;
- Te pegamos, Chico Buarque. Achei muito do fluxo narrativo da loucura de O Duplo em Leite Derramado;
- Quem não segrega não se diverte.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Ernest Hemingway - The Sun Also Rises (O Sol Também Se Levanta)

(antes, queria agradecer à Lori que me emprestou o livro após algumas conversas sobre hemingway, e também dizer que um dia eu devolvo, juro)

Já havia ouvido falar que se tratava de um livro bobo, onde as pessoas apenas bebiam e de alguma maneira tinham grana pra isso. Aquela coisa Manoel Carlos.
Blasfêmia.
O livro começa com uma frase de Gertrude Stein: "You are all a lost generation" (Vocês todos são uma geração perdida).
E assim ficou conhecida a geração de autores americanos vivendo em Paris no período pós Primeira Guerra, começo da Grande Depressão (turminha que ficou famosa por ser retratada no filme Meia Noite em Paris).
O enredo gira ao redor de duas personagens: Lady Brett e Jake Barnes.
Lady Brett é uma mulher linda e especialista em manter homens ao seu redor o tempo todo. Gosto muito da maneira que Hemingway tece a personagem. O mais legal? É descrita como uma mulher andrógina, de cabelos curtos e forte. Yet, "a damned fine-looking woman".
Um dos meus trechos favoritos é a descrição de Lady Brett andando pelo caos da fiesta caótica em Madrid, como se a festa fosse feita em sua homenagem. A narrativa esconde o estilo do autor no ritmo do andar de Lady Brett. Lindo.
É uma personagem apaixonante, mas muitas vezes odiada pela facilidade com que ilude, descarta e mantém os homens ao seu redor, conseguindo tudo o que quer deles, da maneira que lhe convém. Eu, particularmente, adoro. E também vai gostar quem gosta de um mal-feito. Lady Brett representa a tal "imoralidade feminina" em sua face mais adorável.
Jake Barnes é um rapaz educado, rico, inteligente. É ele a linha que segura o livro, que é cercado por personagens caóticas como Lady Brett e o judeu Robert Cohn. Todos alcólatras e precisando desesperadamente de um terapeuta.
Jake parece ser o único homem equilibrado, que todos confiam, e é o fio condutor do livro. Apesar de (também) apaixonado por Lady Brett, Jake tem um pequeno problema: um ferimento de guerra que o tornou impotente. E talvez por isso mesmo mantenha sua sanidade.
Razões pra amar o livro: uma heroína masculina, um herói impotente.
O enredo gira ao redor da viagem que as personagens, entediadas com a rotina de cafés e festas em Paris, decidem fazer até Madrid assistir as touradas e corridas de touros.
Um retrato divertido e melancólico da Lost Generation.

Anotações randômicas sobre o livro:
- Hemingway gosta tanto da palavra "swell" quanto Cole Porter (ou seja, muito);
- Razão pra amar: uma heroína masculina, um herói impotente;
- É.muito.vinho;
- Notei um pouco de anti-semitismo na descrição do Robert, mas talvez isso seja um vício da minha geração politicamente correta;
- Cerveja não resolve nossos problemas existenciais, mas ficar sóbrio também não;
- A Espanha é uma coisa meio bárbara;
- As touradas eram uma desculpa pra espanhol fazer uma festa de vários dias, tipo o Carnaval;
- Ser impotente é foda, mas te mantém nos eixos;
- A Lady Brett não desembolsa um centavo pra nada;
- Toureiros são gatos;
- Gertrude Stein estava certa, e Hemingway sabia muito bem disso.

Se você se interessa pela literatura em língua inglesa da época, é uma obra essencial por ser uma bonita e cruel auto-caricatura da glamourizada Lost Generation.

Um dedo de prosa.

Esse não é um blog de crítica literária, nem possui pretensões de verdade absoluta.
São impressões de uma leitora qualquer.
Sou uma leitora de banco de ônibus.
Uma leitora de canto de parque.
Sempre fiz anotações sobre os livros que leio, e respondia às sugestões de fazer delas um blog com um "quem sabe".
Pois finalmente, quem soube.
Acredito que cada leitura é uma experiência pessoal e você já deve saber que assim como não tem lei pro coração, não existe verdade absoluta sobre arte.
Então por fim, encarecidamente, não leve a sério minhas notas mentais sobre tantas aventuras que vivo entrelinhas.
Cada leitor é um co-autor e essas são minhas obras.
Fique à vontade.