terça-feira, 26 de março de 2013

A Paixão Segundo G. H. - Clarice Lispector

Todo exemplar de livro tem uma jornada de nascimento, coisa que o criado mudo sabe bem, mas não conta.
Às vezes vai parar nas nossas mãos por mera atração física.
Edições raras viram troféu na estante, tamanho o fetiche.
Tem casos que nos foi apresentado por um amigo em comum - "ele combina tanto com você!".
Posso dizer que já aconteceu - me apaixonar pelo nome.
Também já me tombei pela estirpe. Sem contar o velho acaso.
Ao tirar da prateleira, com a finalidade de anotar trechos aqui pro Todo Ponto, tirei a camada de pó da capa e o peito denunciou uma saudade.
Cheio de anotações e uma dedicatória bonita da Maíra, presente amiga, na época prestes a viajar pra longe, por um ano.
Foi o livro de estreia do Livrando.
Livrando é uma espécie de clube do livro/desculpa pra conhecer gente incrível e tomar bons vinhos que acontece quinzenalmente entre amigos, na casa da Clarice e do Paulo, casal anfitrião da mais alta gentileza, mais fina trilha sonora e maiores orgias gastronômicas.
Surgiu em 2011 e trouxe as melhores noites da minha vidinha pacata paulistana.
O livro não poderia ter sido melhor escolha. Fez com que nos apaixonemos uns pelos outros e mais ainda pela Clarice.
Clarice.
Clarice dispensa muitas apresentações.
Aliás, Clarice talvez precise ser desapresentada.
É tanta frase atribuída, tanto clichê. Nenhum descontexto que faça jus à nossa maior autora.
A Paixão Segundo G.H. é um livro difícil, dolorido. É um renascimento.
Foi lido e analisado à exaustão, tocando a alma de cada um envolvido nessa primeira leitura.
O enredo, se eu contar assim, é banal.
G.H., após despedir a empregada, resolve fazer uma faxina na área de serviço (área estranha a ela até então). Inicia aí uma jornada de horror e renascimento, chegando até o negado selvagem, nosso instinto primário. Kakfiana, esmaga a barata contra a porta de um armário e resolve provar da gosma branca.
Aos poucos, entramos na imensidão do interior de G.H., sua vida, suas dúvidas, seus amores, transcendendo o cotidiano, num intenso diálogo que tenta a lançar pra fora do humano e observar a si com a visão de uma barata, estranha à civilização e prestes a explodir.
Assim, o livro, é universal.
G.H. bravamente percorre toda a distância que nos separa da barata.
Clarice procura o humano que nos resta ao atravessar aquele animal, considerado nosso oposto, com os próprios dentes.
E dentro de G.H. encontramos cada um de nós. É impossível não se deixar levar por tantas questões comuns, tantos espelhos. Impensável, porém possível, passar incólume (afinal existem também os daltônicos das letras).
Alerta na primeira página:

A POSSÍVEIS LEITORES
Este livro é como um livro qualquer.
Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas
por pessoas de alma já formada.
Aquelas que sabem que a aproximação,
do que quer que seja, se faz gradualmente
e penosamente - atravessando inclusive
o oposto daquilo que vai se aproximar.
Aquelas pessoas que, só elas,
entenderão bem devagar que este livro
nada tira de ninguém.
A mim, por exemplo, o personagem G.H.
foi dando pouco a pouco uma alegria difícil;
mas chama-se alegria
C.L.

Clarice que me permita a ousadia de ter lido sem ter alma formada.
Também me pergunto, agora, se alguém a tem.
Clarice não dá ponto sem nó (não é isso um bom autor?).
A Paixão Segundo G.H. é uma escolha. Difícil.
Não é livro pra quem compartilha frase de auto ajuda usando o peso de Lispector.
É livro pra gente grande. Que sabe ser do tamanho de uma barata.
E chama-se alegria.

Anotação randômica:
- Com a nova lei trabalhista de empregadas, fico imaginando Danuza Leão comendo barata.
- Barata é proteína?

segunda-feira, 11 de março de 2013

O Grande Gatsby - F. Scott Fitzgerald

Existem livros bons.
Existem livros gostosos de ler.
Existem livros envolventes.
Existem livros que você se apaixona pelas personagens.
Existem livros que você não quer que terminem nunca (e fica na dúvida se devora tudo ou se economiza páginas).
E existem livros que são tudo isso e mais um pouco, como é o caso de O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald.
O primeiro pensamento que me vem à mente após terminar a leitura é entender como Fitzgerald não é idolatrado ferozmente fora dos Estados Unidos. Estilo, construção de personagens, enredo.
Tudo se encaixa. Habilidade de Hemingway com suavidade de Cole Porter.
Meu amor por esse livro começou cedo, no dia da compra.
Encontrei o exemplar laranjinha, edição da Penguin, no dia em que realizei meu sonho de conhecer a Shakespeare and Co. em Paris. Encontrei-o no meio daqueles milhões de livros antigos empilhados, ao lado de um Machado de Assis em inglês, enquanto um cliente tocava piano no andar de cima.
Puro fetiche.

O narrador é o comerciante Nick Carraway, ou "old sport". Com o tempo, fica amigo de seu vizinho, o misterioso Jay Gatsby. Gatsby é um milionário (provavelmente um gângster), popular pelas festas glamourosas que oferecia em sua casa em West Egg.
Nick logo descobre que Gatsby não era assim tão vazio. Oferecia as festas na esperança de encontrar por acaso sua amada Daisy, casada há cinco anos com Tom.
Tom é um bígamo preconceituoso, republicano e com um pronto discurso conservador sobre toda e qualquer coisa. A definição de hipócrita no dicionário.
A gente fica torcendo pelo Gatsby, claro, que durante o livro se transforma, de magnata intocável a um apaixonado sensível e vulnerável. Mas como acontece na vida, nem sempre quem inspira o amor está a altura de quem sente.
O conflito entre Gatsby, Tom e Daisy desencadeia uma série de acontecimentos que tirariam todo o gosto do livro se eu contasse.
É uma crítica ferrenha e delicada (o estilo de F. Scott prova que é possível essa combinação) ao "Sonho Americano", que contaminou o mundo todo até hoje.
Cheio de paixão, ingratidão, e sem compromisso com o final Hollywoodiano, trágico.
Como se mostra a vida.

Anotações randômicas:
- Se puder, leia em inglês. Não é uma leitura difícil, pelo contrário. Fitzgerald é um dos poucos autores que sabem ser elegantes com muita facilidade em língua inglesa.
- Deve ser muito difícil traduzir um livro desses. Imagino o tradutor perdendo o sono com a expressão "old sport", se decidindo por "velho companheiro" (como está na versão em português). Com certeza passou o resto da vida imaginando novas soluções. Epitáfio: "Tentei".
- Quem gosta de Christian Grey não conheceu Jay Gatsby.